Mulher brasileira é vítima de seu próprio machismo, diz historiadora
Paula Adamo Idoeta
Da BBC Brasil em São Paulo
Atualizado em 7 de outubro, 2013 - 06:45 (Brasília) 09:45 GMT
Quanto mais educação, mais transparente e igualitária é a relação', diz
Mary Del Priore
Mary Del Priore é historiadora, professora universitária e autora de
obras como História das Mulheres no Brasil (ed. Contexto), vencedor
dos prêmios Jabuti e Casa Grande e Senzala, e Histórias e Conversas de
Mulher (ed. Planeta), em que acompanha avanços femininos desde o
século 18.
Para a historiadora, as mulheres brasileiras do último século
conquistaram o direito de votar, tomar anticoncepcionais, usar biquíni e a
independência profissional. Mas ainda hoje são vítimas de seu próprio machismo.
Série da BBC aborda anseios e conquistas das mulheres atuais
Muitas mulheres "não conseguem se ver fora da órbita do homem"
e são dependentes da aprovação e do desejo masculino, opina ela.
BBC Brasil - Você vê traços de machismo ou preconceito em seus ambientes
profissional e pessoal?
Mary Del Priore - No ambiente profissional, não vivi nenhum
problema, porque desde os anos 1980 o setor acadêmico sofreu grande
"feminilização". As mulheres formam um bloco consistente nas
disciplinas (universitárias) mais diversas.
"O fato de que elas
busquem se realizar resgatando o trabalho doméstico, manual ou artesanal é uma
prova de que a singularidade feminina tem muito a oferecer. A mulher pode, sim,
realizar-se através do trabalho doméstico e não necessariamente no público"
Mas, na sociedade, acho que o machismo no Brasil se deve muito às
mulheres. São elas as transmissoras dos piores preconceitos. Na vida pública,
elas têm um comportamento liberal, competitivo e aparentemente tolerante. Mas
em casa, na vida privada, muitas não gostam que o marido lave a louça; se o
filho leva um fora da namorada, a culpa é da menina; e ela própria gosta de ser
chamada de tudo o que é comestível, como gostosa e docinho, compra revistas
femininas que prometem emagrecimento rápido e formas de conquistar todos os
homens do quarteirão.
O que mais vemos, sobretudo nas classes menos educadas, é o machismo das
nossas mulheres.
BBC Brasil - Mas muitas até querem que os maridos ajudem em casa, mas
será que essas coisas do dia a dia acabam virando motivos de brigas justamente
por conta do machismo arraigado? E também há mulheres estudadas, ambiciosas e
fortes - mas também vaidosas, que ao mesmo tempo querem se sentir desejadas por
um parceiro/a que as respeite. Isso é uma conquista delas, não?
Del Priore - Ambas as questões não podem ter respostas generalizantes. Mais e
mais, há maridos interessados na gerência da vida privada e na educação dos
filhos. Quantos homens não vemos empurrando carrinhos de bebê, fazendo cursos
de preparação de parto junto com a futura mamãe ou no supermercado? Tudo
depende do nível educacional de ambos os parceiros. Quanto mais informação e
mais educação, mais transparente e igualitária é a relação.
Quanto às mulheres emancipadas, penso que preferem estar sós do que mal
acompanhadas. Chega de querer "ter um homem só para chamar de seu".
Elas estão mais seletivas e não desejam um parceiro que queira substituir a mãe
por uma esposa.
BBC Brasil - Como a mulher mudou – e o que permanece igual – no último
século?
"Na vida privada,
muitas se revelam não só machistas mas racistas e homofóbicas. Muitas não
gostam que o marido lave a louça; se o filho leva um fora da namorada a culpa é
da menina, ela própria gosta de ser chamada de tudo o que é comestível, como
gostosa e docinho, compra revistas femininas que prometem emagrecimento rápido
e formas de conquistar todos os homens do quarteirão"
Del Priore - Temos uma grande ruptura nos anos 60 e 70 no Brasil, que
reproduz as rupturas internacionais, com a chegada da pílula anticoncepcional.
As mulheres começaram a ocupar postos nos diversos níveis da sociedade, a
ganhar liberdade sexual e financeira. Ela passa atuar como propulsora de
grandes mudanças. Quebra-se o paradigma entre a mulher da casa e a mulher da
rua.
(Mas) a mulher continua se vendo através do olhar do homem. Ela quer ser
essa isca apetitosa e acaba reproduzindo alguns comportamentos das suas avós.
Basta olhar algumas revistas femininas hoje. Salvo algumas transformações, a
impressão é de que a gente está lendo as revistas da época das nossas avós.
A mulher não consegue se ver fora da órbita do homem, diferentemente de
algumas mulheres europeias, que são muito emancipadas. O que ela quer é
continuar sendo uma presa desejada.
A (antropóloga) Mirian Goldenberg diz que a mulher brasileira continua
correndo atrás do casamento como uma forma de realização pessoal. No topo da
agenda dela não está se realizar profissionalmente, fazer o que gosta, viajar,
conhecer o mundo – está encontrar um par e botar uma aliança no dedo. Mesmo que
o casamento dure uma semana.
Quais as amarras das mulheres atuais?
Del Priore - O machismo é uma das questões. Outra, que talvez explique a
inatividade da mulher frente a esse padrão, é que, com a entrada num mercado de
trabalho tão competitivo, com tantas crises econômicas e uma classe média
achatada, a luta pela sobrevivência se impõe sobre qualquer outro projeto.
Essa falta de tempo para respirar, o fato de ter que bancar filhos ou
netos, isso talvez não dê à mulher tempo para se conscientizar e se erguer
acima do individualismo – outra tônica do nosso tempo – e pensar no coletivo.
BBC Brasil - Ao mesmo tempo em que a mulher avança no mercado de
trabalho, algumas também têm perdido a vergonha de parar de trabalhar para
cuidar dos filhos; ou resgatado, como hobbies ou profissão, antigas
"tarefas de mulher", como tricô, cozinha, artes manuais. Desse ponto
de vista, existe um poder maior de escolha das mulheres?
Del Priore- Sempre apostei que as mulheres não deveriam buscar ser "um homem
de saias", mas apostar em sua diferença e singularidade. As marcas do
gênero, segundo sociólogos, são a criatividade, a diplomacia, capacidade de
dialogar, etc. O fato de que elas busquem se realizar resgatando o trabalho
doméstico, manual ou artesanal é uma prova de que a singularidade feminina tem
muito a oferecer.
A mulher pode, sim, realizar-se através do trabalho doméstico e não
necessariamente no público. Desse ponto de vista elas só estariam dando
continuidade a uma longa tradição, discreta e oculta, que é a independência
adquirida por meio de atividades desenvolvidas no lar. Nossas avós, quando
trabalhadoras domésticas, já conheceram essa situação. A tecnologia só nos
ajuda a torná-lo mais eficiente.
BBC Brasil - Que papel a educação teve na mulher que você é hoje?
"Hoje o grande
desafio, em qualquer idade, é o equilíbrio interior, estar bem consigo mesma.
Quando começamos a envelhecer – o que é o meu caso, aos 61 anos –, é preciso
olhar isso com coragem, ver isso como um investimento positivo"
Del Priore - Tive uma trajetória peculiar. Resolvi fazer universidade (aos 28
anos) quando já era mãe de três filhos. A maturidade me ajudou muito a
progredir. Tive a sorte de ter na PUC-RJ e na USP um ambiente muito receptivo,
porque era um momento em que a universidade estava largando aquela camisa de
força marxista e se abrindo para estudos de cultura e sociedade, que me
interessavam.
BBC Brasil - Quais os principais desafios que você enfrenta como mulher?
Del Priore - Hoje o grande desafio, em qualquer idade, é o equilíbrio
interior, estar bem consigo mesma. Quando começamos a envelhecer – o que é o
meu caso, aos 61 anos –, é preciso olhar isso com coragem, ver isso como um
investimento positivo. E ter tempo para a família, para as pessoas em volta da
gente.
Quando era mais jovem, eu me preocupava muito com grandes projetos. Hoje
me preocupo com o pequeno – acho que é por aí que você muda a realidade. É no
dia a dia, na maneira como você trata as pessoas à sua volta, no respeito que
você tem pelo seu bairro. Não temos condições de abraçar o mundo. Através do
micro, a gente consegue aos poucos transformar o macro.
Essa entrevista faz parte
da série "100 Mulheres - Vozes de Meio Mundo". A série, publicada
globalmente pela BBC, trata dos desafios da mulher contemporânea.